sábado, 13 de outubro de 2007

Retratos (2) - O Cunha, alfarrabista em Luanda


* Victor Nogueira

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(...) Lembras-te do Cunha? Em Luanda era um alfarrabista de corpo dolorido e disforme a quem os miúdos roubavam e provocavam. Cria em mim, esperava ainda ver o meu canudo de senhor doutor, dizia ser eu um jovem diferente dos outros e nunca o consegui convencer do seu erro; falávamos de ópera e ele trauteava as árias, falávamos do Camilo e do Zola e da enorme fortuna que ele teria se o os livros em stock fossem libras. O homem que não conseguiu ser ele mesmo, condenado a vender a abominável literatura de cordel. "Escreva-me, não se esqueça deste pobre velho!""Havemos de ver-nos nas Ferias Grandes! " O meu postal ficou sem resposta. O Cunha morreu, só, abandonado, como um cão! (Eu, que era seu amigo, nunca o convidara para a minha mesa). E nas tardes quentes e plúmbeas mais uma voz silenciou-se: os frigoríficos do Pólo Norte -Frimatic, o Rei dos Frigoríficos - substituem os livros que nunca foram libras! (1)

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1 - Escrito em Évora, em 1969.03.16 (Num repelão) O Cunha havia falecido em fins de 66, princípios de 67. O "Notícias" de Luanda dedicou-lhe umas linhas, lastimando a sua morte e o egoísmo dos homens. Teriam posto em leilão os livros da livraria e a Casa dos Frigoríficos anexou a lojeca, perto da Sé. Ficou deste modo privado do seu único meio de subsistência. O seu sonho era vender tudo e regressar a Portugal (à Metrópole, como então se dizia). Gostaria de ter vendido bons livros, de ter sido um bom alfarrabista. E dizia-me, quando vim para Lisboa: "Escreva me, meu amigo, não se esqueça deste velhote. O senhor há de ser alguém!" (NSF - 1968.08.20)
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Foto do post em memorias3
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Ao fundo à esquerda ficava a Cervejaria Polo Norte, na esquina, e à direita a loja dos Frimatic. No meio, no prédio mais baixo, ficava a loja do Cunha; à direita, a Igreja de N, Sra dos Remédios (Sé de Luanda), onde oficiava o Cónego Manuel das Neves, de que falei noutros posts, preso pela PIDE a seguir aos ataques do MPLA de 4 de fevereiro de 1961.

Foi o Padre Manuel das Neves quem me baptizou, crismou e deu a 1ª Comunhão. Gostava deste sacerdote com quem falava muitas vezes e que nunca vi como o sanguinário terrorista como a comunicação social de Luanda o passou a apresentar após o 4 de Feveriro de 1961.

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